quarta-feira, 3 de abril de 2013

CONTEÚDO DA I UNIDADE ESTUDOS SOCIOS CULTURAIS 1°ANO




O POVO
BRASILEIRO
A FORMAÇÃO E O SENTIDO DO
BRASIL
Darcy Ribeiro
INTRODUÇÃO







OBrasileosbrasileiros,suagestaçãocomopovo,éoquetrataremosde
reconstituir e compreender nos capítulos seguintes. Surgimos da
confluência,doentrechoqueedocaldeamentodoinvasorportuguêscom
índios silvícolas e campineiros e com negros africanos, uns e outros
aliciadoscomoescravos.




Nessa confluência, que se sob a regência dos portugueses, matrizes
raciaisdíspares,tradiçõesculturaisdistintas,formaçõessociaisdefasadas
seenfrentam

esefundem

paradarlugaraumpovonovo(Ribeiro1970),
numnovomodelodeestruturaçãosocietária.Novoporquesurgecomouma
etnia nacional, diferenciada culturalmente de suas matrizes formadoras,
fortemente mestiçada, dinamizada por uma cultura sincrética e
singularizadapelaredefiniçãodetraçosculturaisdelasoriundos.Também
novoporqueseasimesmoeévistocomoumagentenova,umnovo
gênerohumanodiferentedequantosexistam.Povonovo,ainda,porqueé
um novo modelo de estruturação societária, que inaugura uma forma
singular de organização sócio‐econômica, fundada num tipo renovado de
escravismo e numa servidão continuada ao mercado mundial. Novo,
inclusive,pelainverossímilalegriaeespantosavontadedefelicidade,num
povotãosacrificado,quealentaecomoveatodososbrasileiros.





Velho, porém, porque se viabiliza como um proletariado externo. Quer
dizer,comoumimplanteultramarinodaexpansãoeuropéiaquenãoexiste
parasimesmo,masparagerarlucrosexportáveispeloexercíciodafunção
deprovedorcolonialdebensparaomercadomundial,atravésdodesgaste
dapopulaçãoquerecrutanopaísouimporta.




A sociedade e a cultura brasileiras são conformadas como variantes da
versão lusitana da tradição civilizatória européia ocidental, diferenciadas
por coloridos herdados dos índios americanos edos negros africanos. O
Brasil emerge, assim, como um renovo mutante, remarcado de
características próprias, mas atado genesicamente à matriz portuguesa,
cujas potencialidades insuspeitadas de ser e de crescer aqui se
realizariamplenamente.




A confluência de tantas e tão variadas matrizes formadoras poderia ter
resultado numa sociedade multiétnica, dilacerada pela oposição de
componentes diferenciados e imiscíveis. Ocorreu justamente o contrário,
umavezque,apesardesobreviveremnafisionomiasomáticaenoespírito
dos brasileiros os signos de sua múltipla ancestralidade, não se
diferenciaram em antagônicas minorias raciais, culturais ou regionais,
vinculadasalealdadesétnicasprópriasedisputantesdeautonomiafrenteà
nação.




As únicas exceções são algumas microetnias tribais que sobreviveram
comoilhas,cercadaspelapopulaçãobrasileira.Ouque,vivendo'paraalém
das fronteiras da civilização, conservam sua identidade étnica. São tão
pequenas,porém,quequalquerquesejaseudestino,nãopodemafetarà
macroetniaemqueestãocontidas.




O que tenham os brasileiros de singular em relação aos portugueses
decorre das qualidades diferenciadoras oriundas de suas matrizes
indígenaseafricanas;daproporçãoparticularemqueelassecongregaram
no Brasil; das condições ambientais que enfrentaram aqui e, ainda, da
naturezadosobjetivosdeproduçãoqueasengajouereuniu.






Essaunidadeétnicabásicanãosignifica,porém,nenhumauniformidade,
mesmoporqueatuaramsobreelatrêsforçasdiversificadoras.Aecológica,
fazendo surgir paisagens humanas distintas onde as condições de meio
ambienteobrigaramaadaptaçõesregionais.Aeconômica,criandoformas
diferenciadasdeprodução,queconduziramaespecializaçõesfuncionaise
aosseuscorrespondentesgênerosdevida.E,porúltimo,aimigração,que
introduziu, nesse magma, novos contingentes humanos, principalmente
europeus, árabes e japoneses. Mas o encontrando formado e capaz de
absorvê‐los e abrasileirá‐los, apenas estrangeirou alguns brasileiros ao
gerardiferenciaçõesnasáreasounosestratossociaisondeosimigrantes
maisseconcentraram.




Poressasviasseplasmaramhistoricamentediversosmodosrústicosde
ser dos brasileiros, que permitem distingui‐los, hoje, como sertanejos do
Nordeste,caboclosdaAmazônia,crioulosdolitoral,caipirasdoSudestee
Centrodopaís,gaúchosdascampanhassulinas,alémdeítalo‐brasileiros,
teuto‐brasileiros,nipo‐brasileirosetc.Todoselesmuitomaismarcadospelo
que têm de comum como brasileiros, do que pelas diferenças devidas a
adaptaçõesregionaisoufuncionais,oudemiscigenaçãoeaculturaçãoque
emprestamfisionomiaprópriaaumaououtraparceladapopulação.




Aurbanização,apesardecriarmuitosmodoscitadinosdeser,contribuiu
paraaindamaisuniformizarosbrasileirosnoplanocultural,sem,contudo,
borrarsuasdiferenças.Aindustrialização,enquantogênerodevidaquecria
suasprópriaspaisagenshumanas,plasmouilhasfabrisemsuasregiões.As
novas formas de comunicação de massa estão funcionando ativamente
comodifusoraseuniformizadorasdenovasformaseestilosculturais.




Conquantodiferenciadosemsuasmatrizesraciaiseculturaiseemsuas
funções ecológico‐regionais, bem como nos perfis de descendentes de
velhospovoadoresoudeimigrantesrecentes,osbrasileirossesabem,se
sentemesecomportamcomo





umagente,pertencenteaumamesmaetnia.Valedizer,umaentidade
nacional distinta de quantas haja, que fala uma mesma língua,
diferenciadaporsotaquesregionais,menosremarcadosqueosdialetosde
Portugal.Participandodeumcorpodetradiçõescomunsmaissignificativo
paratodosquecadaumadasvariantessubculturaisquediferenciaramos
habitantesdeumaregião,osmembrosdeumaclasseoudescendentesde
umadasmatrizesformativas.




Mais que uma simples etnia, porém, o Brasil é uma etnia nacional, um
povo‐nação,assentadonumterritóriopróprioeenquadradodentrodeum
mesmo Estado para nele viver seu destino. Ao contrário da Espanha, na
Europa, ou da Guatemala, na América, por exemplo, que são sociedades
multiétnicasregidasporEstadosunitáriose,porissomesmo,dilaceradas
por conflitos interétnicos, os brasileiros se integram em uma única etnia
nacional, constituindo assim umpovo incorporado em uma nação
unificada, num Estado uni‐étnico. A única exceção são as múltiplas
microetnias tribais, tão imponderáveis que sua existência não afeta o
destinonacional.




Aquela uniformidade cultural e esta unidade nacional que são, sem
dúvida,agranderesultantedoprocessodeformaçãodopovobrasileiro
não devem cegar‐nos, entretanto, para disparidades, contradições e
antagonismos que subsistem debaixo delas como fatores dinâmicos da
maior importância. A unidade nacional, viabilizada pela integração
econômicasucessivadosdiversosimplantescoloniais,foiconsolidada,de
fato, depois da independência, como um objetivo expresso, alcançado
atravésdelutascruentasedasabedoriapolíticademuitasgerações.Esseé,
sem dúvida, o único mérito indiscutível das velhas classes dirigentes
brasileiras.ComparandooblocounitárioresultantedaAméricaportuguesa
comomosaicodequadrosnacionaisdiversosaquedeulugaraAmérica
hispânica,podeseavaliaraextraordináriaimportânciadessefeito.






Essaunidaderesultoudeumprocessocontinuadoeviolentodeunificação
política, logrado mediante um esforço deliberado de supressão de toda
identidadeétnicadiscrepanteederepressãoeopressãodetodatendência
virtualmente separatista. Inclusive de movimentos sociais que aspiravam
fundamentalmenteedificarumasociedademaisabertaesolidária.Aluta
pelaunificaçãopotencializaereforça,nessascondições,arepressãosociale
classista,castigandocomoseparatistasmovimentosqueerammeramente
republicanosouantioligárquicos.




Subjacente à uniformidade cultural brasileira, esconde‐se uma profunda
distânciasocial,geradapelotipodeestratificaçãoqueopróprioprocesso
deformaçãonacionalproduziu.Oantagonismoclassistaquecorrespondea
toda estratificação social aqui se exacerba, para opor uma estreitíssima
camadaprivilegiadaaogrossodapopulação,fazendoasdistânciassociais
maisintransponíveisqueasdiferençasraciais.




O povo‐nação não surge no Brasil da evolução de formas anteriores de
sociabilidade,emquegruposhumanosseestruturamemclassesopostas,
mas se conjugam para atender às suas necessidades de sobrevivência e
progresso. Surge, isto sim, da concentração de uma força de trabalho
escrava,recrutadaparaservirapropósitosmercantisalheiosaela,através
deprocessostãoviolentosdeordenaçãoerepressãoqueconstituíram,de
fato,umcontinuadogenocídioeumetnocídioimplacável.




Nessas condições, exacerba‐se o distanciamento social entre as classes
dominanteseassubordinadas,eentreestaseasoprimidas,agravandoas
oposições para acumular, debaixo da uniformidade étnico‐cultural e da
unidade nacional, tensões dissociativas de caráter traumático. Em
conseqüência, as elites dirigentes, primeiro lusitanas, depois luso‐
brasileirase,afinal,brasileiras,viveramsempreevivemaindasobopavor
pânico do alçamento das classes oprimidas. Boa expressão desse pavor
pânicoéabrutalidaderepressivacontraqualquerinsurgênciaea





predisposição autoritária do poder central, que não admite qualquer
alteraçãodaordemvigente.Aestratificaçãosocialseparaeopõe,assim,os
brasileirosricoseremediadosdospobres,etodoselesdosmiseráveis,mais
doquecorrespondehabitualmenteaessesantagonismos.Nesseplano,as
relações de classes chegam a ser tão infranqueáveis que obliteram toda
comunicação propriamente humana entre a massa do povo e a minoria
privilegiada,queaeaignora,atrataeamaltrata,aexploraeadeplora,
como se esta fosse uma conduta natural. A façanha que representou o
processo de fusão racial e cultural é negada, desse modo, no nível
aparentementemaisfluidodasrelaçõessociais,opondoàunidadedeum
denominador cultural comum, com que se identifica um povo de 160
milhões de habitantes, a dilaceração desse mesmo povo por uma
estratificaçãoclassistadenítidocoloridoracialedotipomaiscruamente
desigualitárioquesepossaconceber.




Oespantosoéqueosbrasileiros,orgulhososdesuatãoproclamada,como
falsa,"democraciaracial",raramentepercebemosprofundosabismosque
aquiseparamosestratossociais.




O mais grave é que esse abismo não conduz a conflitos tendentes a
transpô‐lo,porquesecristalizamnummodusvivendiqueapartaosricos
dospobres,comosefossemcastaseguetos.Osprivilegiadossimplesmente
seisolamnumabarreiradeindiferençaparacomasinadospobres,cuja
misériarepugnanteprocuramignorarouocultarnumaespéciedemiopia
social,queperpetuaaalternidade.Opovo‐massa,sofridoeperplexo,a
ordem social como um sistema sagrado que privilegia uma minoria
contempladaporDeus,àqualtudoéconsentidoeconcedido.Inclusiveo
dom de serem, às vezes, dadivosos, mas sempre frios e perversos e,
invariavelmente,imprevisíveis.




Essa alternidade se potencializou dinamicamente nas lutas seculares
dosíndiosedosnegroscontraaescravidão.





Depois,somentenasrarasinstânciasemqueopovo‐massadeumaregião
seorganizanalutaporumprojetopróprioealternativodeestruturação
social,comoocorreucomosCabanos,emCanudos,noContestadoeentre
osMucker.




Nessas condições de distanciamento social, a amargura provocada pela
exacerbação do preconceito classista e pela consciência emergente da
injustiça bem pode eclodir, amanhã, em convulsões anárquicas que
conflagrem toda a sociedade. Esse risco sempre presente é que explica a
preocupaçãoobsessivaquetiveramasclassesdominantespelamanutenção
da ordem. Sintoma peremptório de que elas sabem muito bem que isso
podesuceder,casoseabramasválvulasdecontenção.Daísuas"revoluções
preventivas", conducentes a ditaduras vistas como um mal menor que
qualquerremendonaordemvigente.




Édeassinalarqueessapreocupaçãoseassentava,primeiro,nomedoda
rebeldiadosescravos.Dadaacoloraçãoescuradascamadasmaispobres,
esse medo racial persiste, quando são os antagonismos sociais que
ameaçameclodircomviolênciaassustadora.Efetivamente,poderáassumir
aformadeconvulsãosocialterrível,porque,comumaexplosãoemocional,
acabaria provavelmente vencida e esmagada por forças repressoras, que
restaurariam,sobreosescombros,avelhaordemdesigualitária.




OgrandedesafioqueoBrasilenfrentaéalcançaranecessárialucidezpara
concatenar essas energias e orientá‐las politicamente, com clara
consciênciadosriscosderetrocessosedaspossibilidadesdeliberaçãoque
elas ensejam. O povo brasileiro pagou, historicamente, um preço
terrivelmente alto em lutas das mais cruentas de que se tem registro na
história, sem conseguir sair, através delas, da situação de dependência e
opressão em que vive e peleja. Nessas lutas, índios foram dizimados e
negros foram chacinados aos milhões, sempre vencidos e integrados nos
plantéis de escravos. O povo inteiro, de vastas regiões, às centenas de
milhares,foitambémsangradoemcontra‐revoluçõessem




conseguir jamais, senão episodicamente, conquistar o comando de seu
destino para reorientar o curso da história. Ao contrário do que alega a
historiografiaoficial,nuncafaltouaqui,atéexcedeu,oapeloàviolênciapela
classedominantecomoarmafundamentaldaconstruçãodahistória.Oque
faltou, sempre, foi espaço para movimentos sociais capazes de promover
sua reversão. Faltou sempre, e falta ainda, clamorosamente, uma clara
compreensãodahistóriavivida,comonecessárianascircunstânciasemque
ocorreu, e um claro projeto alternativo de ordenação social, lucidamente
formulado,quesejaapoiadoeadotadocomoseupelasgrandesmaiorias.
Nãoéimpensávelqueareordenaçãosocialsefaçasemconvulsãosocial,
porviadeumreformismodemocrático.Maselaémuitíssimoimprovável
neste país em que uns poucos milhares de grandes proprietários podem
açambarcar a maior parte de seu território, compelindomilhões de
trabalhadoresaseurbanizaremparaviveravidafamélicadasfavelas,por
força da manutenção de umas velhas leis. Cada vez que um político
nacionalistaoupopulistaseencaminhaparaarevisãodainstitucionalidade,
asclassesdominantesapelamparaarepressãoeaforça.




Estelivroéumesforçoparacontribuiraoatendimentodessereclamode
lucidez.Issoéoquetenteifazeraseguir.Primeiro,pelaanálisedoprocesso
de gestação étnica que deu nascimento aos núcleos originais que,
multiplicados,vieramaformaropovobrasileiro.Depois,peloestudodas
linhasdediversificaçãoqueplasmaramosnossosmodosregionaisdeser.
E, finalmente, por via da crítica do sistema institucional, notadamente a
propriedadefundiáriaeoregimedetrabalhonoâmbitodoqualopovo
brasileirosurgiuecresceu,constrangidoedeformado.





FONTE:DARCY RIBEIRO

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